terça-feira, 30 de setembro de 2008

A crise - Torquato Neto


I
(Ao redor de minha mesa no escuro
cadeiras imóveis que reclamam corpos
e não vêm)


Como um derradeiro suicida de após bomba
procuro aniquilar o inseto impossível
que continuo sendo
a zumbir sobre a minha própria cabeça
em mirabolantes circunvoltas.
Há em tudo uma extensa camada de sossego
que inquieta. O medo
tece invisíveis teias de pavor sobre o meu corpo.
Caras que não podem esbugalhar-se mais
observam impassíveis a destruição do mito.
E não choram.

II
Uma rosa branca nasceu no inferno.
Pudesse ser um consolo
e eu me agarraria a isto e não veria coisa alguma além.
Mas hei de . E o lutar anda muito inglório
atualmente.

Pergunta: Porque não mais sentir o inseto
apagando a cabeça?

Continuar poderia ser mais
ou menos,
mas não é.
O inseto vôa baixo e nao abaixa
sobre minha cabeça.
Rodo. o inseto vôa muito alto.
Viro. Subo. Salto.
O inseto sobe mais e sobe mais um pouco
e some. Mas a sua presença continua doendo
como se ele estivesse mesmo
encravado no meu fígado.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Cecília Meireles


(...) Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área de minha vida. Área mágica, onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo, e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde foi nessa área que os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano."


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Lua Adversa.

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha
Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém (tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Um pouco mais de Pitadas de Alice Ruiz.


Já que você não aparece,venho por meio desta
devolver teu faroeste,o teu papel de seda,
a tua meia bege,
tome também teu book,
leve teu ultraleve
carteira de saúde,
tua receita de quibe,
de quiabo,
de quibebe,
do diabo que te carregue,
te carregue,
te carregue teu truque sujo, teu hálito,
teu flerte, tua prancha de surf,
tua idéia sem verve,
que nada disso me serve
Já que você não merece,
devolva minhas preces,
meu canto, meu amor,
meu tempo, por favor,
e minha alegria que,
naquele dia,
só te emprestei por uns dia
se é tudo que lhe pertence.

PS: Já que você foi embora por que não desaparece?
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terça-feira, 23 de setembro de 2008

Pitadas de Alice Ruiz.


Na esquina da consolação
com a paulista
me perdi de vista
virei artista
equilibrista
meio mãe
meio menina
meio meia-noite
meio inteira
inteiramente alheia
toda lua cheia.
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Depois que um corpo comporta outro corpo, nenhum coração suporta o pouco.
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Sem saudade de você
sem saudade de mim
o passado passou enfim.
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Vontade de ficar sozinha
só para saber
se você ia
ou vinha
quando deixou
esse bagaço
no meu peito
pedaço estreito
defeito na mercadoria
do jeito que você queria.
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Ainda me viro
e me vejo
pronta a te chamar
a te contar
que aprendi hoje
coisas que você soube
ainda te vejo
em cada bicho
em cada pensamento
me surpreendo olhando
com teus olhos de pesquisa
e o que vejo
vira beleza.
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Olhar o mesmo olho
com outros olhos

em outro olhar
o mesmo olho

nos mesmos olhos
o olhar do outro
de olho.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

1984 - George Orwel - Pág. 151


Graças à falta de compreensão, permaneciam sãs de juízo. Apenas engoliam tudo, e o que engoliam não lhes fazia mal, porque nao deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Trecho de 1984 (pág.121/122) - George Orwell


- Já fizeste isto antes?
- Naturalmente. Centenas de vezes... quer dizer, muitíssimas vezes.
- Com membros do Partido?
- Sempre com membros do Partido.
-Do partido interno?
-Não, com aqueles porcos, não. Mas há uma porção que gostaria de tirar proveito, se tivesse oportunidade. Não são tão santos quanto pretendem.

O coroção dele deu um salto. Muitíssimas vezes, dissera ela. Oxalá tivessem sido centenas.. milhares. Tudo quanto cheirasse a corrupção o enchia sempre de ardentes esperanças. Quem poderia saber? O Partido talvez estivesse podre sob a crosta; seu culto da severidade e a autonegação podiam ser apenas uma máscara da iniquidade. Se pudesse infeccioná-los todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para apoderecer, debilitar, minar!

Ele puxou-a para baixo, fê-la ajoelhar-se à sua frente.

-Escuta. Quantos mais homens tivestes, mais te quero. Compreendes?
-Perfeitamente.
-Odeio a pureza, odeio a virtude. Nã quero que exista virtude alguma, em parte nenhuma. Quero que todos sejam corruptos até ossos.
-Então eu sirvo, querido. Sou corrupta até os ossos.
-Gostas de fazer isto? Não me refiro a mim, somente. Gostas da coisa em si?
-Adoro!

Acima de tudo, era o que ele desejava ouvir. Não somente o amor de uma pessoa, mais o instinto animal, o desejo simples, indiscriminado; era a força que faria a derrocada do Partido. Apertou-a contra o chão, esmagando campânulas. Desta vez não houve empecilhos. Dentro de algum instantes, o ofegar do peito de ambos voltou ao normal, e com um agradável torpor, permaneceram imóveis. O sol parecia ter esquentado mais. Ambos tinham sono. Ele puxou o macacão abandonado e cobriu-a um pouco. Quase imediatamente caíram no sono e dormiram cerca de meia hora.

Wiston acordou primeiro. Sentou-se e ficou contemplando a face sardenta, ainda adormecida, apoiada na palma da mão. Com exceção da boca, Júlia não podia ser considerada bonita. Olhando-se de perto, descobria-se uma ruga ou duas perto dos olhos. O cabelo escuro e curto era estraordinariamente espesso e macio. Wiston raciocinou que ainda não sabia todo o nome dela, e onde morava.

Aquele corpo jovem e forte, agora completamente desprotegido, provocou nele uma sensação de pena, e proteção.Mas não voltou de todo a ternura física, orgânica, que sentira sob a aveleira, enquanto cantava o tordo. Puxou o macacão de lado e observou a pele branca e macia. Antigamente, pensou ele, um homem olhava um corpo de mulher, via que era desejável e pronto. Mas agora não era possível ter amor puro, ou pura lascívia. Não havia mais emoção pura; estava tudo misturado com medo e ódio. A união fora uma batalha, o clímax uma vitória. Era um golpe desferido no Partido. Era um ato político.